CRÔNICA
O coveiro e o psicanalista
Por Elizeu da Costa Melo
Em 2019 - iniciei uma jornada de meditação em um dos
cemitérios de Rio Branco no Acre. Desde o primeiro dia – os moradores daquela
cidade me acolheram muito bem. Em especial o seu Firmino (coveiro do cemitério). Desde 2019 - A cidade dos mortos tem sido nosso ponto de
encontro – dialogo e reflexões.
Um dos primeiros aprendizados que tive na cidade dos mortos
– foi que o silêncio é uma regra fundamental para escutar a si mesmo e o
outro.
Durante as reflexões – comecei a perceber que a morte é
organizada e gosta de números e palavras. É colecionadora de números e
letreiros – como também gosta de frases informativas e números inteiros. Em
cada lápide – há uma habitação – bem como um morador ou moradores.
Em cada catacumba - Vi depositado: desejos – sonhos não
realizados – projetos não iniciados – medo – culpa – raiva - corações
amargurados – arrogância – ignorância - desrespeito – violência – má educação –
crenças limitantes – religiosidade – hipocrisia - orgulho – ilusões -
frustrações – devaneios - alguns arrependimentos – um pouco de simplicidade -
honestidade e um profundo silêncio de seres que já “tagarelaram” e hoje
se sente invisível e com poucos amigos na superfície.
Em março de 2020 em Rio Branco – entramos no processo de
distanciamento social e não pude ir mais ao cemitério. Em julho de 2020 –
resolvi retomar o exercício de meditação na cidade dos mortos. Chegando lá –
logo vi seu Firmino sentado ao lado de uma catacumba – com um olhar para o horizonte
– aspecto decaído - olhos marejados – aparência abatida e pálida. Aproximei-me
lentamente e lhe indaguei:
O que aconteceu seu Firmino?
Ao que ele respondeu:
- Senti sua falta – você não sabe o quão difícil foi vir a
esse lugar no dia e hora que você costumava vir e não lhe encontrar. Eu já
tinha acostumado a lhe receber uma vez por semana – pois nossas conversas eram
produtivas – alegres e cheias de sabedoria. Tais diálogos me davam forças para
continuar mais uma semana – e quando você se foi – mais uma vez perdi a
esperança.
Foi então que perguntei:
- Porque você se tornou coveiro?
E ele respondeu:
Tornei-me coveiro por causa do meu amor!
Eu logo perguntei:
- Quem é seu grande amor?
Meu grande amor era Clarice! Ela era tudo que eu tinha –
nunca fui tão amado e nunca havia recebido tanta atenção como recebi dela. Ela
foi enterrada aqui e por isso fiz de tudo para trabalhar aqui para que assim eu
pudesse está sempre ao lado dela. Nunca superei sua partida – vivo em luto até
hoje. Mas quando você apareceu em nossa cidade – minha vida começou a ganhar
esperança e comecei a experimentar um pouco de vitalidade interna e cheguei a
comentar com Clarice sobre nossa amizade.
Mas quando você parou de vir à cidade dos mortos – minha
esperança também desapareceu – eu não consegui lidar com mais um abandono.
Hoje! É um dia em que escolhi para me suicidar – aqui está a corda e quero que
me ajude!
Escutei o seu Firmino atentamente! E depois de alguns
minutos de silêncio - lhe perguntei:
- Porque o senhor quer morrer? Perguntei:
Ao que Firmino respondeu: Porque não tenho mais prazer
em viver – e vejo que o mundo não tem sentido – as pessoas não se respeitam –
sou invisível na sociedade e no meu trabalho – quando alguém me dirige a
palavra é apenas para dar ordens – como se eu não tivesse sentimentos – não
tenho amigos – ninguém quer conversar comigo. Não sei se você sabe - mas os
coveiros sofrem discriminação – somos mal vistos e tidos como impuros e muitos
não querem nem está próximo de mim enquanto outros têm medo de tocar minha mão.
Minha profissão é cavar – acho que cavei tanto e sem
perceber – cavei minha própria cova – cavei tão fundo que hoje não consigo sair
dela – e a única forma de resolver isso – é me enterrando nela.
Percebi que seu Firmino estava perdendo a firmeza e logo
lhe fiz uma proposta. O convidei para fazermos a terapia do luto – ali mesmo no
cemitério. E disse a ele: Se depois da terapia você ainda quiser se matar –
não lhe impedirei. Ele concordou. Após alguns minutos de conversa – pedi ao
seu Firmino que nos conduzisse até uma cova vazia – e eu o conduzi para dentro
da mesma para iniciarmos o ritual fúnebre. Após concluir todo ritual – seu
Firmino me agradeceu e disse que a ideação suicida desapareceu. Durante a
terapia – descobrimos que seu Firmino estava com medo de viver - estava perdido
– sem objetivos e não havia concluído o luto de superação da esposa Clarice. (Também fizemos uma regressão para desatar
os nós de sua difícil infância enquanto ele estava dentro da cova).
Depois do ritual do luto de sua esposa – fizemos o ritual
da morte do seu Firmino e logo descobriu como era está morto – após todo o
processo - ele retornou revigorado – renasceu do mundo dos mortos e a ideia de
morte se afastou. Hoje! Seu Firmino ainda faz terapia e continua muito bem e
está reconstruindo sua vida.
OBS. Biografia completa e imagem das obras do autor neste blog- Página Biblioteca.
Crônica excelente e estimuladora à tratamentos psicológicos. Biografia impressionante. Parabéns!
ResponderExcluirQue maravilha de crônica. Parabéns Dr Elizeu! Sou fã!
ResponderExcluirRealmente, nessa vida somos um pouco coveiros... Cavando sonhos... Enterrando outros...Mas, viver acima de tudo!
ResponderExcluirQue lindo parabéns Dr Elizeu Melo!!
ResponderExcluirQue lindo parabéns Dr Elizeu Melo!!
ResponderExcluirExcelente crônica!
ResponderExcluirAmei,que coisa interessante,vc foi profundo, parabéns pela iniciativa,e o título então,foi de muito ,uma excelente escolha. É maravilhoso saber que ainda existem seres que buscam essas compreensões!!! Muito top mesmo
ResponderExcluirQue trabalha lindo, parabéns pela iniciativa e que biografia interessante!Vc é show!! Fiquei fã,vou querer autógrafo viu!!
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